quarta-feira, 30 de março de 2011

Homem-máquina

Esta postagem apresenta um excelente texto publicado na edição de 12.07.2009 da Revista O Globo, na coluna intitulada Colunista Convidado. A autora é a cantora Luiza Possi. É esperançoso constatar a existência de jovens conscientes da situação em que estamos, pois pior do que a situação é a falta de consciência e de disposição para mudá-la.
Já espalhei esta ideia a partir de e-mails e agora volto a fazê-lo por meio deste blog. Para quem já a tenha lido - no e-mail que enviei -, segue uma sugestão: vale a pena ler de novo.
Homem-máquina
Acho que é mais fácil dizer para muita gente ao mesmo tempo
que você está entrando no carro e indo ao supermercado
do que sentar com um amigo
e falar do que realmente nos faz bem, e do que nos faz mal.
“Nossa sociedade. Nós. Homens. Humanos. Máquinas. Onde nos perdemos? Quando realmente nos encontramos?
Acho que não existe outro período na História onde tivemos tanta liberdade quanto temos hoje, nenhum tipo de repressão, nem oposição a nada. Podemos tanto e essa talvez seja a maior repressão, a maior barreira entre as pessoas.
A sensação de poder fazer o que quiser gera a vontade de fazer tudo ao mesmo tempo. A internet se aproxima da velocidade da luz, nos possibilitando falar com todos, de uma só vez.
Quantidades exorbitantes! E a qualidade?
Acho que é mais fácil dizer para muita gente ao mesmo tempo que você está entrando no carro e indo ao supermercado do que sentar com um amigo e falar do que realmente nos faz bem, e do que nos faz mal. O conceito de se relacionar está mudando, não sabemos ainda muito bem para onde.
Comecei a pensar seriamente sobre isso no dia em que encontrei pessoalmente um grande amigo que conversava toda noite comigo pelo Messenger, foi tão estranho... Na época e pelo tipo de conversa que tínhamos, eu poderia dizer que ele era meu melhor amigo, e de repente nos vimos ali, completamente sem graça, sem saber sobre o que falar, então eu dei o primeiro passo e perguntei se ele estava melhor. Ele riu e falou:
- Te respondo mais tarde no MSN.
Seria mais fácil assim, a gente já se conhecia naquele esquema, aquela era a nossa relação possível. Era menos assustador lidar com a minha interpretação de suas palavras, do tom de voz que eu imprimia em cada frase, da risada que eu via passando na minha cabeça e que talvez ele nunca tivesse dado. Era a minha relação com a minha imaginação através da sugestão dele.
Imaginem, então, se o Twitter promovesse um encontro entre as pessoas que postam mensagens o dia inteiro, dando as coordenadas de cada passo de suas vidas, e seus seguidores que acompanham fervorosamente cada informação. Como seria? O que diriam uns aos outros? Seria confortável saber quem são as pessoas que sabem tanto da sua vida? Que tipo de intimidade é criada entre essas pessoas? Às vezes acho que jogamos essas preciosas informações de nossas vidas à deriva, sem direcionar de verdade para ninguém.
Preenchemos esse espaço em branco do mundo virtual de nós mesmos e não absorvemos de fato nenhuma informação do outro.
O mundo virtual está diretamente relacionado ao mundo imaginário, e nenhum é de fato palpável. E assim somos cada vez mais livres e mais entocados em nossos planetas particulares, nos privando da troca construtiva com o outro, ficando apenas com a ideia de se comunicar.
Acho que tudo tem dois lados e até mais. Usar a Internet para expandir nossas fronteiras, manter contato com pessoas que estão distantes, poder divulgar nosso trabalho para quem tiver interesse é fantástico, é o ápice da democracia, todos nós podemos, não há hierarquia, além de uma série de outras vantagens. Mas a questão que me inquieta é que ainda somos pessoas que precisam urgentemente voltar a se relacionar com o mundo real, com os gestos reais que vêm do outro, poder reagir de fato a uma ação sincera e espontânea que na verdade já é uma reação da nossa ação ali presente, disposto e disponível.
Falta de tempo é a nossa grande aliada na hora de ter uma desculpa para não podermos nos encontrar, mas tempo é a única coisa que temos nessa vida.”
As últimas palavras do texto de Luiza Possi me fazem lembrar uma frase da trilogia O Senhor dos Anéis:
“A única coisa a fazer é decidir como usar o tempo que nos foi dado.”

2 comentários:

Homerix disse...

Impressionante a fonte do texto (não esperava tamanho discernimento da jovem cantora-que-segue-os-passos-da-mãe), o conteúdo atual (apesar de ser 2-anos-velho), agora crescido exponencialmente. É exatamente como sinto que as coisas estão. Os jovens que tem aversão ao telefone, aproveitam a torpedagem explícita, meus filhos inclusive... e nas coprorações, a ausência cada vez mais explícita da técnica TBC (tira a bunda da cadeira) em troca do email, do Same Time ... outro dia peguei duas meninas sorrindo simultaneamente, em baias coladas, e descobri que uma estava 'falando'com a outra, sabe-se lá o quê...

enfim...

Guedes disse...

Amigo Homerix,

Infelizmente, textos que falam sobre comportamentos inadequados costumam manter-se atuais por muito tempo. Mas, felizmente, também surgem surpresas como a proporcionada por Luiza Possi. Portanto, apesar do desânimo provocado por situações como as citadas por você, ainda há esperança. Quando a minha esperança balança releio os seguintes trechos do livro A mosca azul, de Frei Betto.

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“Às vezes também tenho vontade de mandar tudo às favas. Pensa que não me invadem esse sentimento de frustração, essa amargura oca, essa acidez na boca da alma? Sim, tem hora em que me canso de carregar ladeira acima essa esperança esburacada. Tem hora em que me sinto Prometeu acorrentado, mas sem revolta, agradecido por ter as mãos atadas. E a única coisa que me passa pela cabeça é embriagar-me de alienação e ficar na varanda, contemplando silenciosamente a cidade lá embaixo, miríades de cristais reluzindo impessoais, anônimos, indiferentes ao meu estupor.

É muito frustrante semear esperanças. São grãos miúdos, delicados, quase invisíveis, ora plantados no caminho acidentado, ora num coração angustiado, sempre no terreno árido da pobreza insolente. E depois vem o árduo trabalho de regar todos os dias, ver emergir o primeiro broto, um fiapo de verde aflorando sobre a terra negra, e a gente é tomado por esse sentimento feminino do querer cuidar e começa então a acreditar que a primavera existe.

A esperança é um pássaro em voo permanente. Segue adiante e acima de nossos olhos, flutua sob o céu azul, não se lhe opõe nenhuma barreira. É assim em tudo aquilo que se nutre de esperança: o amor, a educação de um filho, o sonho de um mundo melhor.

A esperança é uma fênix. Sempre a renascer das cinzas.”

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enfim...

É por concordar com Frei Betto que continuo fazendo coisas das quais uma grande maioria já desistiu. Não nasci no Brasil – fui trazido para cá com dois anos de idade – mas posso repetir aquele bordão “Eu sou brasileiro e não desisto nunca” com mais convicção do que a maioria dos que aqui nasceram.

Abraços,
Guedes