sexta-feira, 13 de maio de 2011

Era uma vez uma infância


Esta postagem apresenta um texto publicado na coluna intitulada Última Palavra da revista Isto É, na edição de 26 de novembro de 2008. O autor é o cantor e compositor Zeca Baleiro. Já o divulguei a partir de e-mails e agora, inspirado pela postagem anterior, volto a fazê-lo por meio deste blog, pois ele mantém-se atual. Para quem já o tenha lido, segue uma sugestão: vale a pena ler de novo.

Era uma vez uma infância

"Não deixa de ser irônico pensar em crianças em sua primeira idade estudando um idioma que nem seu é."

Matéria publicada nesta revista em outubro sob o título ‘Grandes antes da hora’ discorria sobre a ‘agenda’ de crianças com menos de dois anos, já divididas entre aulas de inglês, teatro e música, isso tudo ‘para auxiliar o desenvolvimento’. Profissionais especializados como psicanalistas, psicólogos e psiquiatras ouvidos pela reportagem alertavam para o perigo que tal precocidade pode trazer à infância e para o evidente fato de que, nessa idade, quanto mais espontâneas as atividades, melhor.

Certo é que há hoje um sem-número de ofertas de serviço e cursos destinados a crianças pequenas, algo que já se configura como uma tendência e, por conseguinte, um crescente mercado em que, certamente nem todos os profissionais devem ter a formação e experiência devidas para tratar com matéria tão literalmente delicada. Admitindo que o buraco é ainda mais embaixo, me pergunto: o que leva pais a gesto tão notoriamente absurdo? Ausência – e então as atividades seriam uma forma de compensá-la? Uma ansiosa expectativa de competitividade na vida adulta do filho? Transferência de suas próprias aspirações e desejos? Imaturidade? Ou a boa e velha loucura que assola o mundo neste novo século? Fico com a última alternativa.

Não é de hoje que noto pais e mães ansiosos com o lugar dos filhos no mercado de trabalho (?). Lembro de, numa reunião à qual fui certa vez em uma escola mais conservadora onde meus filhos não viriam a estudar, ter visto um pai pedir a palavra e perguntar à coordenadora, em alto e bom som: ‘O que a escola faz para preparar as crianças para o mercado de trabalho?’. Um silêncio desconcertante tomou conta da sala, e, jeitosamente, a moça tentou explicar àquele apressado sujeito que escolas fundamentais não têm essa função, que são responsáveis por um ensino mais elementar, etc. Detalhe: as crianças em questão eram pirralhos de seis anos de idade prestes a entrar para o primeiro ano do ensino fundamental.

O torto questionamento desse pai, infelizmente, deixa claro que esse é um pensamento mais comum do que a nossa vã filosofia pode imaginar, e a existência de escolinhas destinadas a ensinar inglês a crianças de seis meses atesta isso (como diz a canção, ‘quando acabar o maluco sou eu!’). Assim, deixa-se de lado o que de mais precioso a infância pode ter, a própria infância – a fantasia, o lúdico e a ignorância (se é que me faço entender) dando lugar ao compromisso, ao desempenho, à obrigação, atributos do mundo adulto. Diz a matéria que as escolinhas em questão ‘associam o aprendizado a recursos lúdicos’. Quando me vejo em dúvida sobre o sentido das palavras, como agora, recorro ao dicionário. Diz o Houaiss sobre lúdico – ‘que se faz por gosto, sem outro objetivo que o próprio prazer de fazê-lo; atividade que vise mais ao divertimento que a qualquer outro objetivo’.

Curiosamente, o mesmo dicionário explica a origem latina do vocábulo infância: ‘Dificuldade ou incapacidade de falar; mudez’. Não deixa de ser irônico pensar em crianças em sua primeira idade, a idade da mudez, estudando um idioma que nem seu é. Diante disso, não há como não perguntar: para que serve mesmo a infância? De minha parte, prefiro um mundo povoado por cidadãos monolíngües, mas com repertório afetivo e lúdico, que por profissionais competitivos, poliglotas e sem alma.”

Creio não ser demais lembrar que o que vem depois é consequência inevitável do que foi feito antes. Portanto, o que os filhos – que os pais afirmam ser o seu bem mais precioso – tornar-se-ão dependerá de como viverem este período a cada dia mais mal interpretado: a infância. Entendê-la como período preparatório para a sobrevivência em um cruel e competitivo mercado de trabalho impede o desenvolvimento de crianças como seres humanos e as transforma em mercadorias que se venderão por um preço cada vez mais aviltado.

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