sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A fábula do lobo-traficante na sociedade dos cordeiros

A importância dada pela mídia a cada prisão de um “famoso” traficante de drogas mede bem o grau de hipocrisia atingido por esta sociedade viciada e sem noção. Será que algum dia ela perceberá que, em um mundo onde vigore a Lei da Oferta e da Procura, enquanto houver ávidos consumidores jamais deixará de existir uma legião de interessados fornecedores e, portanto, a única maneira de livrar-se dos traficantes de drogas é acabar com o consumo?
Será que é difícil entender que sendo o tráfico de drogas um dos ramos “comerciais” mais rentáveis deste mundo não existe a menor dificuldade em encontrar quem dê continuidade as atividades de um “famoso” traficante que seja preso?
Será que algum dia esta sociedade deixará de viver segundo o lema me engana que eu gosto? Se o pior cego é o que não quer ver, o pior problema é o que não se quer enxergar.
A fábula apresentada nesta postagem foi copiada do livro Drogados da Vida, do escritor e jornalista Fernando Portela, publicado em 1982. Hoje, 29 anos depois, ela descreve perfeitamente a sociedade na qual sobrevivemos. Não, Fernando Portela não escreveu de forma visionária, e sim sobre a sociedade daquela época e a permanência da validade da fábula deve-se ao fato de jamais ter sido feito algo efetivo em relação ao problema das drogas. Há uma citação atribuída a Moshe Feldenkrais que, em minha opinião, explica a manutenção da validade da fábula.
“Pense nisso: O que fazemos conosco agora é o mais importante para o amanhã. Se não fizermos nada para mudar nossa atitude e o nosso modo de atuar, amanhã parecerá ontem, exceto pela data”.
Feito este pequeno (!) preâmbulo, passemos ao excelente texto de Fernando Portela.
Fábula do lobo-traficante na sociedade dos cordeiros
“A sociedade dos cordeiros condenou aquele lobo a 20 anos de prisão. Era terrível o seu crime: tráfico de entorpecentes. Por sua causa, milhares de cordeirinhos destruíram suas vidas. O lobo era o inimigo público número 1.
Vinte anos depois, apesar desse e de outros lobos-traficantes terem sido presos, a sociedade dos cordeiros estava mergulhada no vício. Era um problema de segurança nacional. Talvez, por isso, um repórter resolveu entrevistar aquele lobo, à saída da penitenciária. Estaria ele arrependido? Teria consciência do que provocara? Sentia-se injustiçado? Afinal, a sociedade dos cordeiros cumprira, rigorosamente, a Lei. Só que alguma coisa estava errada. Lobos-traficantes eram presos todos os dias, enquanto aumentava o consumo de tóxico.
- Qual a opinião de um lobo que pagou 20 anos por um dos piores crimes contra a humanidade?
- Você quer mesmo saber?, foi logo falando o lobo. – O problema não se restringe a mim, nem aos que me seguiram nessa profissão. Eu cometi parte do crime, reconheço, comercializando um produto proibido...
- E quem cometeu a outra parte?, indagou o repórter, ele próprio irritado com a desfaçatez do lobo.
- Ora, a sociedade dos cordeiros!, afirmou o lobo. – Acaso fui eu que provoquei a corrida ao tóxico? Como seria possível eu me tornar traficante, se não houvesse procura do meu produto?
“Isso faz sentido”, pensou o repórter. E arriscou uma outra pergunta:
- Como a sociedade dos cordeiros poderia ter evitado tudo isso?
- Ora pergunte a ela, respondeu o lobo. – Mas dificilmente a sociedade dos cordeiros concordará que tem parte dessa culpa. Para isso, seria necessário que cada cordeiro, em particular, meditasse sobre sua própria vida e o que considera melhor para o seu rebanho. Mas, você sabe que meditar, refletir, ponderar e se auto-analisar é muito difícil, quando há tantos lobos à disposição para assumir todas as culpas.
Quando a entrevista com o lobo-traficante foi publicada, a sociedade dos cordeiros reagiu: os lobos são criminosos irrecuperáveis, cínicos, arrogantes e diversionistas. Para eles, só mesmo a Pena de Morte.”
Encerro a postagem com dois trechos usados por Fernando Portela na apresentação de seu livro, pois os considero bastante elucidativos.
“Este livro não fala de traficantes e tiroteios, mas das crises da instituição familiar, da falta de perspectiva de toda uma juventude, do consumismo, da desumanização das cidades... as causas reais que levam ao consumo do tóxico.
Um livro para educadores, pais, psicólogos, políticos e consumidores de drogas. E para todos aqueles que tenham a coragem de enfrentar o problema e propor a reformulação indispensável no nosso sistema social e político - pois não há outra saída.”
Infelizmente, a maioria desta sociedade insiste em não enxergar as causas reais que levam ao consumo do tóxico e prefere acreditar que haja outra saída. Uma saída da qual ela esteja isenta de participação. Mas que sociedadezinha omissa, hein!

Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente análise.