terça-feira, 27 de novembro de 2012

Uma espécie de exame de consciência para os "homens honestos" do mundo

Em conformidade com a ideia de sequenciar postagens que tenham alguma afinidade, segue uma que focaliza a questão da criminalidade. Ela apresenta um texto do livro Novos Rumos para a Educação, de Huberto Rohden, editado pela livraria Freitas Bastos, em junho de 1960. Lido isto, vocês poderão pensar algo mais ou menos assim: normal ele nunca deve ter sido, mas agora parece que pirou de vez, pois, em 2012, recorre a Novos Rumos para a Educação publicados em 1960; no milênio passado! Então, para evitar que pensamentos como esse se consolidem, o melhor a fazer é começar a dar as devidas explicações. Apesar de transcorridos 52 anos, o texto é de uma atualidade impressionante, pois focaliza algo pelo qual nada do que foi feito após a sua publicação surtiu efeito: a questão da criminalidade. Meio século se passou, Huberto Rohden desencarnou, a livraria Freitas Bastos acabou, pelos Novos Rumos para a Educação não se trilhou e a questão da criminalidade só aumentou. Portanto, creio que ainda seja válido refletir sobre as ideias contidas no texto apresentado abaixo. Leiam e confiram.
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Tenho diante de mim o livro "Daemon-Stadt" (cidade-demônio) do Dr. Kurt Gauger, médico, psiquiatra e filósofo germânico, obra em que o autor, à luz de abundantes fatos recentes, estuda o alarmante problema da criminalidade juvenil, e até infantil, na Alemanha e em outros países, no período que seguiu às duas guerras mundiais. Chega à conclusão de que a presente geração, produto de gerações anteriores e herdeira de ideologias funestas, perdeu a noção da responsabilidade ética, porque perdeu a noção de ser parte integrante do grande TODO, seja o TODO imediato da humanidade, seja o TODO longínquo do Universo como tal. Uma criança de 12 anos mata seu pai com um tiro de revólver; interrogada pelo motivo do crime, responde cinicamente: "Matei porque quis". Não tem o menor remorso do seu ato, diz, porque toda pessoa tem o direito de fazer aquilo que acha interessante.
Em última análise, quem perde a visão de um TODO maior de quem ele faz parte e que tem de respeitar, perde necessariamente a noção da ética, da obrigação, do dever moral, porque a noção de ética se baseia na consciência de que eu sou parte de um TODO, e que esta parte tem certas obrigações naturais e indeclináveis para com o TODO, que tem direitos reais sobre mim.
Como se vê, o problema da criminalidade afeta o problema da ética, e este radica no problema da metafísica, a questão da íntima natureza humana. "Que é o homem? Donde vem? Para onde vai? Por que está aqui na Terra?" - Não é possível dar base sólida a ética sem responder, satisfatoriamente, a essas perguntas fundamentais da vida.
Necessitamos, não só de professores eruditos para instruir os seus alunos - necessitamos, sobretudo, de mestres de caráter que, com a sua própria vida e vivência, deem a seus discípulos o exemplo da dignidade do homem.
No citado livro "Daemon-Stadt", págs. 122-124, reproduz o Dr. Kurt Gauger a impressionante carta de um jovem delinquente que, à sombra da penitenciária, escreve uma espécie de exame de consciência para os "homens honestos" do mundo. (os negritos são meus). Diz o jovem delinquente:
"Porque vós sois fracos no bem, por isto nos destes o nome de fortes no mal - e com isto condenais uma geração contra a qual pecastes - porque sois fracos.
Nós vos concedemos dois decênios para nos fazerdes fortes - fortes no amor, fortes na boa vontade - vós, porém, nos fizestes fortes no mal, porque sois fracos no bem.
Não nos indicastes caminho algum que tivesse sentido, porque vós mesmos ignorais esse caminho e vos descuidastes de procurá-lo - porque sois fracos. Vosso vacilante "não" assumia atitude incerta diante das coisas proibidas; nós demos uns gritos - e vós retirastes o vosso 'não' e dissestes 'sim', a fim de poupardes os vossos nervos fracos. E a isto chamastes "amor".
Porque sois fracos, por isto comprastes de nós o vosso sossego. - Quando nós éramos pequenos, nos dáveis dinheiro para irmos ao cinema ou comprarmos sorvete; com isto prestastes um serviço não a nós, mas sim à vossa comodidade - porque sois fracos. Fracos no amor, fracos na paciência, fracos na esperança, fracos na fé.
Nós somos fortes no mal - mas as nossas almas têm apenas metade da nossa idade.
Nós fazemos barulho para que não tenhamos de chorar por todas aquelas coisas que deixastes de nos ensinar. Sabemos ler e contar; sabemos quantos estames há nesta ou naquela flor, sabemos como vivem as raposas e conhecemos a estrutura de um pé de capim - aprendemos a ficar quietos nos bancos de escola e apontar o dedo, a fim de contarmos coisas sobre raposas e rosas silvestres - mas não nos ensinastes como enfrentarmos a vida.
Estaríamos até dispostos a crer em Deus, num Deus infinitamente forte que tudo compreendesse e de nós esperasse que fôssemos bons - mas não nos mostrastes um só homem que fosse bom pelo fato de crer em Deus. Ganhastes muito dinheiro com serviços religiosos e murmurastes orações segundo a velha rotina.
Sr. Policial! Põe de parte o teu cassetete e tua pistola! Dize-nos antes o que nos interessa saber: - é verdade que amas a ordem pública a que serves? Ou não será que amas o direito que tens ao teu ordenado e à tua aposentadoria?
Sr. Ministro! Mostra-nos se és forte como homem! Quantas obras boas praticas tu, como cristão, às ocultas?
Será que nós não somos as caricaturas da vossa existência toda feita de mentiras?
Nós somos desordeiros públicos e fazemos muito barulho - vós, porém, lutais às ocultas, um contra o outro; estrangulai-vos comercialmente e armais intrigas para conquistardes posições mais rendosas.
Em vez de nos ameaçardes com bastões de borracha, colocai-nos face a face com homens de verdade, que nos mostrem qual é o caminho certo, não com palavras, mas com a sua vida.
Mas ai! Que vós sois fracos no bem! Os que são fortes no bem vão para a mata-virgem e curam os negros da África (1) - porque eles vos desprezam, assim como nós vos desprezamos. Porque vós sois fracos no bem - e nós somos fortes no mal.
Mamãe, vamos rezar! Porque esses homens fracos estão armados de pistolas!"
Como invalidar esse tremendo exame de consciência que um criminoso institui com os "homens honestos" da sociedade, os que são "fracos no bem"?
Certamente não com velhas teorias papiráceas, mas com uma nova realidade vital...
(1) Alusão a Albert Schweitzer.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Então um dos juízes da cidade acercou-se e disse: "Fala-nos do crime e do castigo."

A recente onda de violência que ocorre em São Paulo despertou minha vontade de espalhar mais uma passagem do maravilhoso livro O Profeta, de Gibran Khalil Gibran. Ele narra o dia em que um profeta retorna à ilha onde nascera, depois de ter passado doze anos em uma cidade. Diante da partida do profeta, as pessoas pedem que ele lhes deixe algo de sua sabedoria e de sua compreensão. A primeira solicitação é para que ele fale do amor. Seguem-se pedidos para falar de matrimônio, filhos, dádiva, comer e beber, trabalho, alegria e tristeza, habitações, roupas, compras e vendas. Então, um dos juízes da cidade acercou-se e disse: "Fala-nos do crime e do castigo." E das palavras do profeta (para diminuir o texto e aumentar a probabilidade de ele ser lido) eu selecionei os trechos abaixo.
"Frequentemente tenho-vos ouvido falar daquele que comete uma ação má como se não fosse dos vossos, mas um estranho entre vós e um intruso em vosso mundo.
Mas eu vos digo: da mesma maneira que o santo e o justo não podem elevar-se acima do que há de mais elevado em vós,
Assim o perverso e o fraco não podem descer abaixo do que há de mais baixo em vós.
E da mesma forma que nenhuma folha amarelece senão com o silencioso assentimento da árvore inteira,
Assim o malfeitor não pode praticar seus delitos sem a secreta concordância de todos vós.
Como uma procissão, vós avançais, juntos, para vosso Eu-divino.
Vós sois o caminho e os que caminham.
E quando um dentre vós tropeça, ele cai pelos que caminham atrás dele, alertando-os contra a pedra traiçoeira.
Sim, e ele cai pelos que caminham adiante dele, que, embora tenham o pé mais ligeiro e mais seguro, não removeram a pedra traiçoeira.
E ouvi também isto, embora a palavra pese rudemente sobre vossos corações:
O assassinado é censurável por seu próprio assassínio.
E o roubado não está isento de culpa por ter sido roubado.
E o justo não é inocente das ações do iníquo.
Sim, o agressor é, muitas vezes, a vítima do agredido.
E mais comumente ainda, o condenado carrega o fardo para o inocente e o irreprochável.
Vós não podeis separar justo do injusto e o bom do malvado,
Porque ambos caminham juntos diante da face do sol, exatamente como os fios branco e negro são tecidos juntos.
E quando o fio negro se rompe, o tecelão verifica todo o tecido e examina também o tear.
Se um dentre vós põe em julgamento a esposa infiel,
Que pese também na balança o coração de seu marido e lhe meça a alma com cuidado.
E aquele que deseja fustigar o ofensor, que examine a alma do ofendido.
E se um dentre vós pretende punir em nome da retidão e derrubar a árvore do mal, que observe as raízes da árvore;
E, na verdade, verá as raízes do bem e do mal, do frutífero e do estéril, entrelaçadas no coração silencioso da terra."
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E da mesma forma que nenhuma folha amarelece senão com o silencioso assentimento da árvore inteira, assim o malfeitor não pode praticar seus delitos sem a secreta concordância de todos vós. Simplesmente perfeito, não?
E quando o fio negro se rompe, o tecelão verifica todo o tecido e examina também o tear. Afinal, os fios branco e negro são tecidos juntos, não é mesmo? O bem e o mal são produzidos pela mesma sociedade. Sendo assim, acabar com a violência é algo impossível sem verificar todo o tecido e examinar também o tear; a sociedade. Sem revisar o comportamento de todos os seus integrantes (com a finalidade de corrigir ações equivocadas e de abandonar lamentáveis omissões) a violência só tende a recrudescer.
E se um dentre vós pretende punir em nome da retidão e derrubar a árvore do mal, que observe as raízes da árvore; e, na verdade, verá as raízes do bem e do mal, do frutífero e do estéril, entrelaçadas no coração silencioso da terra. Entrelaçadas no coração silencioso da sociedade.
E quando um dentre vós tropeça, ele cai pelos que caminham atrás dele, alertando-os contra a pedra traiçoeira. Sim, e ele cai pelos que caminham adiante dele, que, embora tenham o pé mais ligeiro e mais seguro, não removeram a pedra traiçoeira. Infelizmente, vivemos em uma sociedade onde os que têm o pé mais ligeiro e mais seguro, não removem a pedra traiçoeira, pois são indiferentes ao que possa acontecer aos que venham atrás. E falar em indiferença me faz lembrar Marthin Luther King: "O que me assusta não são as ações e os gritos das pessoas más, mas a indiferença e o silêncio das pessoas boas". E que talvez não sejam tão boas quanto imaginam que sejam.
Embora tais palavras pesem rudemente sobre vossos corações, se conseguirdes ouvir a vossa consciência acabareis por concordar que sejam verdadeiras. Para quem - em seu perfil no blog - diz que é "alguém que acredita que a qualidade de uma sociedade é resultado das ações de todos os seus componentes", tais palavras são simplesmente perfeitas. Portanto, faz sentido interpretar a onda de violência que ocorre em São Paulo (e em outros lugares deste planeta) à luz das palavras de Gibran Khalil Gibran? No meu entender, sim. E no de vocês?

terça-feira, 20 de novembro de 2012

O Nosso Dia

Alegando querer homenagear Zumbi dos Palmares, herói que se recusou a aceitar a liberdade para as pessoas do quilombo enquanto outros eram escravizados, o ex-prefeito César Maia instituiu O Dia do Zumbi.
Aqueles que prestam atenção ao que leem (caso de vocês) devem estar se perguntando o que o parágrafo acima tem a ver com o título O Nosso Dia. Rigorosamente, a resposta a essa pergunta resume-se em uma palavra: nada. Mas os parágrafos abaixo mostram que O Dia do Zumbi deve ser considerado um dia comemorativo, ou melhor, reflexivo pela maioria dos integrantes da insana sociedade em que sobrevivemos.
No Vudu, crença espiritual do Caribe, um zumbi (ou zombie) é um morto-vivo. É alguém que não está nem morto nem vivo, apenas entorpecido. Eis o início da explicação que dá sentido ao título desta postagem e que prossegue com a seguinte passagem do livro Um caminho com o coração, de autoria de Jack Kornfield.
"Usamos a negação para fugir das dores e dificuldades da vida. Usamos os vícios para apoiar nossa negação. Os Estados Unidos têm sido chamados de 'sociedade viciada', com mais de vinte milhões de alcoólicos e dez milhões de drogados, (números anteriores a 1993, ano de publicação do livro), além de milhões de viciados em jogo, trabalho, comida, sexualidade, relacionamentos doentios. Nossos vícios são os apegos compulsivamente repetitivos que usamos para evitar sentir as dificuldades da vida e para negá-las. A propaganda nos impele a seguir o ritmo, a continuar consumindo, fumando, bebendo, ansiando por comida, dinheiro e sexo. Nossos vícios servem para nos entorpecer diante da realidade e ajudar a evitar a nossa própria experiência; e, com grande estardalhaço, nossa sociedade encoraja esses vícios."
Os negritos, tanto os acima quanto os demais no texto, são meus e têm a finalidade de criar relações entre segmentos da postagem. E são do livro citado acima, as palavras de Anne Wilson Schaef, autora de When Society Becomes na Addict.
"O elemento mais bem-ajustado da nossa sociedade é a pessoa que não está morta nem viva, apenas entorpecida, enfim um morto-vivo, um zumbi. Quando morta, ela não é capaz de fazer o trabalho da sociedade. Quando plenamente viva, está sempre dizendo 'Não' a muitos dos processos da sociedade, ao racismo, à poluição ambiental, à ameaça nuclear, à corrida armamentista, recusando-se a beber água contaminada e a comer alimentos cancerígenos. Por isso, a sociedade tem o maior interesse em estimular aquelas coisas que tiram o nosso vigor, que nos mantêm ocupados com nossos dilemas e nos conservam ligeiramente entorpecidos e semelhantes a zumbis. Desse modo, nossa moderna sociedade de consumo funciona, ela própria, como um viciado."
Quem está plenamente vivo age de forma consciente, e não em conformidade com a vontade e / ou o interesse de quem se considere acima de nós. Não participa de coisas que sejam prejudiciais aos outros, nem a si mesmo. Usa a tecnologia a seu favor, como ferramenta que é, em vez de segui-la cegamente, mesmo não sabendo para onde ela está indo. E falar em tecnologia, leva-me a apresentar mais uma passagem do livro Um caminho com o coração.
"Um dos nossos vícios mais difundidos é a velocidade. A sociedade tecnológica obriga-nos a aumentar o ritmo da nossa produtividade e o ritmo das nossas vidas. A Panasonic recentemente (lembrem que o livro é de 1993) lançou um novo videocassete capaz de reproduzir a voz em velocidade duas vezes maior, porém mantendo o tom normal. 'Com este videocassete', dizia a propaganda da Panasonic, 'você pode ouvir um dos grandes discursos de Winston Churchill ou do presidente Kennedy ou um dos clássicos da literatura mundial na metade do tempo!'. Fico me perguntando se eles também recomendariam fitas em velocidade duas vezes maior para Mozart e Beethoven. O cineasta Woody Allen comentou essa obsessão com a velocidade dizendo que fez um curso de leitura dinâmica e conseguiu ler Guerra e Paz em vinte minutos. 'É sobre a Rússia', concluiu."
Fico me perguntando qual é fração de entendimento daquilo que ouve para quem ouve em metade do tempo. A conclusão de Woody Allen sobre a sua leitura de Guerra e Paz mostra que a fração é pequena. E para entender melhor o porquê desta postagem, segue mais uma passagem do livro de Jack Kornfield.
"Em uma sociedade que quase exige que vivamos o tempo duas vezes mais rápido, a velocidade e os vícios nos entorpecem diante de nossas próprias experiências. Numa sociedade desse tipo, é quase impossível fixar-nos no nosso corpo ou ficar ligados ao nosso coração; menos possível ainda é nos ligarmos uns aos outros ou à Terra onde vivemos. Ao contrário, encontramo-nos cada vez mais isolados e solitários, afastados uns dos outros e da teia natural da vida. Uma única pessoa dentro de um carro, casas enormes, telefones celulares, walkman presos aos ouvidos... e uma profunda solidão, uma sensação de pobreza interior. Esse é o mais difundido sofrimento de nossa sociedade moderna."
De nossa sociedade moderna, entorpecida e inconsciente de sua submissão a interesses que não são dela como um todo. E aqui eu retorno ao assunto do primeiro parágrafo para fazer uma comparação entre as mentalidades dominantes no século XVII e XXI. Copiei da Internet o seguinte texto sobre Palmares:
"1678: A Pedro de Almeida, governador da capitania de Pernambuco, mais interessava a submissão do que a destruição de Palmares, após inúmeros ataques com a destruição e incêndios de mocambos, eles eram reconstruídos, e passou a ser economicamente desinteressante, os habitantes dos mocambos faziam esteiras, vassouras, chapéus, cestos e leques com a palha das palmeiras. E extraiam óleo da noz de palma, as vestimentas eram feitas das cascas de algumas árvores, produziam manteiga de coco, plantavam milho, mandioca, legumes, feijão e cana e comercializavam seus produtos com pequenas povoações vizinhas, de brancos e mestiços. Sendo assim o governador propôs ao chefe Ganga Zumba a paz e a alforria para todos os quilombolas de Palmares. Ganga Zumba aceita, mas Zumbi é contra, não admite que uns negros sejam libertos e outros continuem escravos. Além do mais eles tinham suas próprias Leis e Crenças e teriam que abrir mão de sua cultura."
Comparemos então o que é dito acima com as palavras de Anne Wilson Schaef.
"O elemento mais bem-ajustado da nossa sociedade é a pessoa que não está morta nem viva, apenas entorpecida, enfim um morto-vivo, um zumbi. Quando morta, ela não é capaz de fazer o trabalho da sociedade. Quando plenamente viva, está sempre dizendo 'Não' a muitos dos processos da sociedade, (...)"
Quando plenamente viva, está sempre dizendo 'Não' a muitos processos da sociedade que visem submetê-la. Ou seja, entre os séculos XVII e o XXI, em alguns aspectos, a mentalidade dominante permanece a mesma. O que mais interessa ainda é a submissão e não a destruição, pois para que as coisas prossigam da forma que interessa aos que julgam-se donos do mundo é imprescindível que haja submissão. E para manter a submissão, creio que a melhor maneira seja o entorpecimento da sociedade. Entorpecimento que produza o efeito de admitir que uns sejam libertos e outros continuem escravos. Zumbi dos Palmares não admitiu tal coisa, mas o mesmo não se pode dizer em relação à maioria dos integrantes desta sociedade entorpecida pelos vícios citados nesta postagem.
Depois de tudo o que foi dito acima, faz sentido considerar que este seja O Nosso Dia? Aos que acharem que sim, sugiro que no aproveitamento do dia de hoje incluam algum tempo para refletir sobre a nossa submissão, pois (usando as palavras de Anne Wilson Schaef) é ela que estimula aquelas coisas que tiram o tiram o nosso vigor, que nos mantêm ocupados com nossos dilemas e nos conservam ligeiramente entorpecidos e semelhantes a zumbis: aos da crença espiritual do Caribe, não ao Zumbi dos Palmares.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Reflexões provocadas por "O calmo desespero das elites" e "A nova classe alta"

Juntei, em uma mesma postagem, as reflexões provocadas por "O calmo desespero das elites" e "A nova classe alta", pois o que Julio Groppa condena é, exatamente, o que o Nizan Guanaes defende. Ou seja, são simplesmente opostas as visões de mundo de um professor e de um publicitário.
"Claro está, desde sempre, que, a título de aquisição de um ensino de suposta melhor qualidade, o fetiche dos segmentos mais abastados em relação à educação privada (a totalidade dos que leem este jornal, por exemplo) jamais revela sua motivação base: a subtração vaidosa de sua prole do contato com o mundo feio, sujo e malvado que os circunda, o qual só pode ser avistado ao longo e em movimento, através das películas de blindagem de suas carruagens metálicas. Um mundo-lixeira.
Ilhados em suas escolas-bunker - quintal de seus condomínios-bunker, de seus shoppings-bunker, de suas academias-bunker -, a cada uma dessas crianças e jovens restaria um dever implícito e inconteste: ultrapassar seus coetâneos, tornados rivais aguerridos pelo melhor lugar ao sol do consumo. Daí um norte a presidir seus passos: a busca do sucesso, da dianteira, da 'felicidade' de aparentar ser sempre mais e melhor do que os outros. (...)"
O que os segmentos mais abastados desejam é ilhar seus filhos em suas escolas-bunker - quintal de seus condomínios-bunker, e livrá-los da convivência com tantas reles criaturas deste mundo. Essa é a visão do professor. De alguém que condena segregações. Mas qual será a visão do famoso publicitário?
"Levei recentemente um de meus filhos para testes de admissão em duas escolas americanas de elite. Lá encontrei muitos pais chineses, indianos. E nada de brasileiros.
Essa elite (à qual pertenço) às vezes parece mais mobilizada para educar os pobres do que os próprios filhos - casa de ferreiro, espeto de pau."
(...) Ser rico é um privilégio, um direito e também uma responsabilidade".
Elite mais mobilizada para educar os pobres do que os próprios filhos! Quanta desfaçatez! Além de propagandas enganosas estamos sujeitos também a afirmações e textos enganosos. O famoso publicitário defende segregações. Coloca seus filhos em escolas americanas de elite e afirma que ser rico é um privilégio e um direito. É difícil perceber que defender privilégios é uma atitude segregativa?
"Nasci no Pelourinho, no largo do Carmo, número 4. Descia a ladeira do Carmo e subia o Pelô todos os dias para ir ao colégio Maristas. Eu ia de ônibus, e a escola era mais cara do que meus pais podiam pagar. Não era escola... Era um investimento."
Não era escola... Era um investimento, diz o famoso publicitário. E o professor Yves de La Taille achando que as escolas devem atuar na formação ética e moral! Realmente, professores nada entendem de escolas, mas, felizmente, existem os publicitários, não é mesmo?
"A classe média, a tradicional e a nova, têm motivos óbvios para estudar e se qualificar: um mercado de trabalho cheio de oportunidades para subir na vida, avançar materialmente.
Já a classe alta tem motivos tão nobres quanto, embora nem sempre tão evidentes: liderar essa transformação com valores includentes, iluministas e brasileiros.”
A classe média tem um motivo nobre para estudar e se qualificar: avançar materialmente. Para Nizan Guanaes (que é rico) avançar materialmente é considerado algo nobre. E, segundo ele, a classe alta tem motivos tão nobres quanto, embora nem sempre tão evidentes: liderar essa transformação com valores includentes e brasileiros. No meu entender, creio que jamais será evidente algo de nobre (no melhor sentido da palavra) na classe alta. E para tal classe liderar essa transformação com valores includentes e brasileiros é evidente que não há nada melhor do que excluir as escolas brasileiras e matricular os filhos em escolas americanas de elite, não é mesmo?
A intenção deste blog é espalhar ideias que ajudem a interpretar a vida e provoquem ações para torná-la cada vez melhor. Melhor para todos. Por isso, creio que, algumas vezes, seja necessário espalhar a ideia de que existe também quem tenha a intenção de, equivocadamente, tentar torná-la melhor apenas para a classe em que se inclui. Ao espalhar A nova classe alta a intenção é questionar um texto de alguém que age nesse sentido. De quem pertence ao grupo de formadores de opinião deste país e que se vangloria de ter chegado até onde chegou: colunista da Folha de S.Paulo. Alguém que já disse que o marketing é tudo na vida das pessoas, e que em um artigo de Barbara Gancia publicado na edição de 28 de outubro de 2011 da Folha de S.Paulo, no qual ela fala sobre a morte de Steve Jobs, merece uma citação na passagem apresentada abaixo.
"(...) Aliás, por falar em iCloud, por que é que agora Steve Jobs sempre aparece recostadão sobre uma nuvem, isso não era coisa que a gente costumava reservar ao Matemático lá de cima? Quem ele acha que é, o Nizan Guanaes?
Dá para acreditar que a nova classe alta a que se refere o famoso publicitário que se considera pertencente à elite tem motivos para liderar essa transformação com valores includentes, iluministas e brasileiros por ele mencionada? Eu não acredito. Eu acredito é no calmo desespero das elites. E vocês?

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

A nova classe alta

Para quem se liga no tema educação, e também para os demais, pois para a construção de uma sociedade sadia é imprescindível o interesse por tal assunto, segue um artigo de Nizan Guanaes, publicado na edição de 16 de outubro de 2012 do jornal Folha de S.Paulo. Leiam-no e procurem refletir sobre o que nele é dito. Minhas reflexões serão compartilhadas na próxima postagem.
A nova classe alta
Depois da nova classe média, este país precisa de uma nova classe alta. O Brasil moderno exigirá uma nova elite. Que é bem diferente de uma casta: um dinheiro responsável que seja gasto assim como foi feito, com o bom-senso das madrugadas e do suor, misturando vitórias e tragédias, mas sempre com muito respeito e espírito público.
Não quero desrespeitar ninguém com generalizações porque toda generalização é burra, mas, muitas vezes, o pai funda e o filho afunda.
Da mesma forma que é preciso educar a população em geral, é preciso também educar os filhos da elite. E, em muitos sentidos, a educação pública tem tido proporcionalmente mais avanços do que a privada.
Da mesma forma que é preciso educar a população em geral, é preciso também educar os filhos da elite
O Brasil que mais cedo do que tarde terá assento permanente no Conselho de Segurançao da ONU e será ouvido em todos os fóruns importantes do mundo precisa preparar os jovens brasileiros para serem futuros líderes globais. Mas, além de falar o bom inglês, eles precisarão também falar fluentemente o português.
Não acredito numa sociedade dividida por preconceitos e ódios. Essa sanha contra os ricos que está acontecendo na França não vai levar a França a lugar nenhum. Mas o novo Brasil construído por um intelectual professor, um líder sindical e uma economista vítima da ditadura exige uma elite à altura desse momento maior do Brasil. Um momento maior, mas não um momento fácil, porque o mundo será cada vez mais competitivo.
Essa elite (à qual pertenço) às vezes parece mais mobilizada para educar os pobres do que os próprios filhos - casa de ferreiro, espeto de pau.
Mas não educar bem uma criança, deixá-la crescer no shopping center, consumindo loucamente sem ter desafios e sonhos que transcendam um abdomen de tanquinho e o próximo modelo de iPhone, é falta de amor com ela e falta de responsabilidade com o país.
Levei recentemente um de meus filhos para testes de admissão em duas escolas americanas de elite. Lá encontrei muitos pais chineses, indianos. E nada de brasileiros.
O português tão ouvido nas lojas de Nova York e Miami é bem menos ouvido na Harvard que eu e o meu Antônio visitamos.
Se você é brasileiro e quer ter um caso secreto em Nova York, leve sua namorada para uma biblioteca.
Visitei Bill Gates em sua casa e me emocionei andando pela biblioteca dele. Estão lá os mais importantes livros da civilização humana nas suas primeiras edições. E é óbvio que o dono daquela biblioteca vai dividi-la com o mundo quando não estiver mais nele.
Ser rico é um privilégio, um direito e também uma responsabilidade.
Nasci no Pelourinho, no largo do Carmo, número 4. Descia a ladeira do Carmo e subia o Pelô todos os dias para ir ao colégio Maristas. Eu ia de ônibus, e a escola era mais cara do que meus pais podiam pagar. Não era escola... Era um investimento.
Meu pai, que era médico, foi para a Inglaterra com bolsa de estudos do governo e me levou para aprender inglês, conhecer o mundo e não ter medo dele. Meu avô Demócrito Mansur de Carvalho, líder sindical comunista, ensinou-me a amar Castro Alves. Minha mãe, a amar Pablo Neruda e Machado de Assis.
Meu pai me ligou para me comunicar a morte de Vinicius com a voz embargada de quem perdeu um amigo. E eles eram todos amigos nossos, porque minha família era amiga dos livros.
Eu devo aos meus pais e ao esforço deles de sacrificar uma parcela significativa do que ganhavam para me dar ao luxo de estudar o fato de eu estar preparado para uma vida e um mundo maiores do que o mundo no qual eu nasci.
E graças a eles eu cheguei até onde cheguei: colunista desta Folha.
A classe média, a tradicional e a nova, têm motivos óbvios para estudar e se qualificar: um mercado de trabalho cheio de oportunidades para subir na vida, avançar materialmente.
Já a classe alta tem motivos tão nobres quanto, embora nem sempre tão evidentes: liderar essa transformação com valores includentes, iluministas e brasileiros.

domingo, 4 de novembro de 2012

O calmo desespero das elites

Por considerá-lo em sintonia com as mais recentes postagens deste blog, segue um artigo de Julio Groppa Aquino, livre-docente da Faculdade de Educação da USP, publicado na edição de 7 de outubro de 2012 do jornal O Estado de S. Paulo, intitulado O calmo desespero das elites.
O calmo desespero das elites
Ilhados em escolas-bunker, nossos filhos estão sucumbindo a um 'dever' implícito e inconteste: ultrapassar seus coetâneos, transformados em aguerridos rivais pelo melhor lugar ao sol do consumo.
Nas duas últimas semanas, dois acontecimentos, aparentemente isolados, interceptaram a típica pasmaceira educacional do País, envolvendo escolas privadas de prestígio: a polêmica em torno da instalação de câmeras nas salas de aula do Colégio Rio Branco, em São Paulo, e a presumida tentativa de suicídio de um aluno do quinto ano do ensino fundamental do Colégio de São Bento, no Rio de Janeiro.
O que parece unir os dois acontecimentos é o fato de que o que se tentou prevenir, num caso, não foi capaz de ser remediado, no outro. Mostra também, por meio da irredutibilidade do segundo, a debilidade ético-política que ronda o primeiro. Em última instância, o caso limite do garoto suicida representaria o contrário absoluto do projeto de controle irrestrito sobre as novas gerações, por parte das famílias endinheiradas e, por extensão, de suas escolas marionetes.
Desponta, aqui, a lógica onipresente a demarcar os afazeres educacionais daqueles pertencentes (ou aspirantes) às classes abastadas: a do ensejo frenético de vigilância dos passos de sua prole. Trata-se de assegurar, a qualquer custo, um monitoramento diuturno das condutas das crianças e jovens de elite a título de 'proteção e cuidado'. Contra o quê?, caberia indagar.
Não bastassem as doses cavalares de bens e serviços à disposição desse segmento da população (do assédio tecnológico à voracidade clinicalizante dos profissionais parapedagógicos de plantão; da oferta de uma miríade de produtos de grife à difícil administração dos excessos comportamentais daí derivados; da volúpia confessional / opinativa nas redes sociais ao imperativo do empreendedorismo infanto-juvenil com pitadas surreais de voluntariado, etc., etc., etc.), trata-se cada vez mais de isolá-los do contato com um mundo potencialmente nefasto, agora no interior dos próprios intramuros escolares. Trata-se, enfim, de extirpar qualquer ameaça à integridade dos rituais extravagantes aí em curso. Em uma palavra: depuração acirrada dos usos e costumes daqueles considerados como a futura proa da minoria socioeconômica. Os fortes, enfim.
Claro está, desde sempre, que, a título de aquisição de um ensino de suposta melhor qualidade, o fetiche dos segmentos mais abastados em relação à educação privada (a totalidade dos que leem este jornal, por exemplo) jamais revela sua motivação base: a subtração vaidosa de sua prole do contato com o mundo feio, sujo e malvado que os circunda, o qual só pode ser avistado ao longo e em movimento, através das películas de blindagem de suas carruagens metálicas. Um mundo-lixeira.
Ilhados em suas escolas-bunker - quintal de seus condomínios-bunker, de seus shoppings-bunker, de suas academias-bunker -, a cada uma dessas crianças e jovens restaria um dever implícito e inconteste: ultrapassar seus coetâneos, tornados rivais aguerridos pelo melhor lugar ao sol do consumo. Daí um norte a presidir seus passos: a busca do sucesso, da dianteira, da 'felicidade' de aparentar ser sempre mais e melhor do que os outros. Tornados autogestores em miniatura de um negócio demasiado incerto (qual seja, a própria vida), alguns deles, no entanto, sucumbirão a um efeito colateral incontornável: o fracasso, a rabeira, a desgraça de ser mais uma entre as tantas reles criaturas deste mundo. Eis o que o pequeno garoto, em sua coragem de desterro, não nos deixa esquecer.
É de um mundo em frangalhos, não obstante em calmo desespero, que seu pequeno grande salto se dá. É de um mundo miserável, em sua opulência fútil, que seu pequeno grande corpo emite seus sinais. Sinais de dor, tão somente e tanto.
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Yves de La Taille fala sobre o descaso das escolas em relação à formação ética e moral e a importância dada por algumas delas à questão de ser uma escola de vencedores. Julio Groppa focaliza as escolas voltadas para as elites e o equivocado estilo de vida destas. Rosaly Sayão focaliza os condomínios bárbaros. Julio Groppa fala dos condomínios-bunker - redutos onde os pais dos "considerados como a futura proa da minoria socioeconômica imaginam obter a subtração vaidosa de sua prole do contato com o mundo feio, sujo e malvado que os circunda, o qual só pode ser avistado ao longo e em movimento, através das películas de blindagem de suas carruagens metálicas. Um mundo-lixeira".
Dá para concordar que essas últimas postagens têm tudo a ver? Será que a próxima também terá alguma coisa a ver com elas? Visitem o blog na próxima quarta-feira e confiram, ok?