quinta-feira, 3 de julho de 2014

O Palhaço

Conforme prometido na anterior, segue uma postagem que reforça a importância do humor e do riso em nossas vidas. Ela apresenta um texto publicado na edição de 7 de fevereiro de 2006 do jornal Folha de S.Paulo, na coluna de Rubem Alves.
O Palhaço
Faz muitos anos fui professor visitante nos Estados Unidos. Na véspera de minha volta ao Brasil vários dos meus alunos vieram ao meu escritório para se despedir. Veio uma moça ruiva, sardenta, longos cabelos sobre os ombros. Olhou-me em silêncio, sorriu e disse: "Sonhei com você. Sonhei que você era uma palhaço..." Sorri de volta. Ela havia me compreendido. Tenho vocação para palhaço.
Em tempos antigos, quando os reis se reuniam com seus ministros graves e sérios, havia o ministro do riso, o bufão, também chamado bobo da corte. Esse ministro tinha prerrogativas especiais. Ele tinha permissão para fazer piadas do próprio rei. Conta-se que numa reunião do ministério de um reino distante o rei dava explicações esfarrapadas sobre uma besteira que havia feito, chegando mesmo a inventar urucubaca. Os ministros concordavam graves e sérios com medo de serem demitidos. Menos o bobo que interrompeu a arenga do rei e disse: "Majestade, há explicações que são piores que uma ofensa.". O rei ficou danado. "Você tem até o fim do dia para explicar-se, sob pena de passar uma semana no calabouço..." O bobo deu uma risadinha e saiu da sala. Ao fim do dia, dadas as explicações, terminada a reunião, o rei se dirigia sozinho para os seus aposentos, mergulhado em seus pensamentos, caminhando por corredores desertos, cheios de colunas. Atrás de uma dessas colunas o bobo estava a espera de sua caça. Quando o rei passou, ele saiu detrás da coluna que o escondia e agarrou com força as majestáticas nádegas murchas. O rei deu um berro enfurecido e o bobo disse: "Perdão Majestade, eu pensei que fosse a rainha..." Aí o rei teve "satori".
(*) satori é uma palavra japonesa usada no Zen Budismo para o fenômeno do Despertar Repentino.
Mora em mim um palhaço. E estou em boa companhia. Nietzsche amava o seu palhaço. No "Ecce Homo" ele escreveu: "Que eu seja exilado de toda a verdade... Sou somente um bufão, somente um poeta..."
É preciso distinguir um bufão de um humorista. Um humorista é um especialista na produção do riso. Riso pelo riso. Ele é bom de piadas. O bufão, ao contrário produz o riso para mostrar as cuecas samba canção debaixo da sobrecasaca. "Ridendo dicere severum" - rindo, dizer as coisas sérias - assim ele descreveu o seu estilo. E acrescentou: "Não é com o ódio que se mata, mas com o riso... De toda verdade que não é acompanhada por um riso, pelo menos poderíamos dizer que é falsa". Octávio Paz misturava a vocação do palhaço com a vocação do sábio: "Os verdadeiros sábios não têm outra missão que aquela de nos fazer rir por meio de seus pensamentos e de nos fazer pensar por meio de seus chistes".
Leczek Kolakowski, filósofo polonês, escreveu um ensaio com o nome "O sacerdote e o bufão". Segundo ele, em toda sociedade há dois tipos de pessoas: os sacerdotes e os bufões. Os sacerdotes são sérios, levam especialmente a sério eles mesmos, suas palavras sempre usam casacas e tudo que é tocado por elas fica sagrado. Os bufões, ao contrário, são destruidores de ídolos e o fazem por meio do riso.
A ruiva estava certa. Dentro de mim mora um palhaço. E é em nome da minha vocação para palhaço que desejo sugerir ao governo, tão sério, a criação de um novo ministério, o "Ministério do Bobo da Corte". A missão do Bobo da Corte será a de andar pelos palácios, aparecer em reuniões secretas sem ser convidado, participar das reuniões das câmaras, e rir muito alto para que todos fiquem sabendo dos ridículos que acontecem em secreto nos recintos sacerdotais. Quando o Bobo da Corte ri as baratas correm...
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"Ridendo dicere severum" - rindo, dizer as coisas sérias. Assim Nietzsche descreveu o seu estilo. E acrescentou: "Não é com o ódio que se mata, mas com o riso... Sim, é com o riso que se matam as equivocadas práticas que impedem que esta dita civilização seja transformada em algo melhor. E ao destacar essas palavras de Nietzsche, me vem à lembrança algo que li em uma entrevista com o artista, ator e autor Hugo Possolo, publicada na edição de dezembro de 2005 da extinta revista Bravo!. Entrevista intitulada Provocação pelo riso e da qual extraí as seguintes palavras:
"Como artista e palhaço, estou interessado no poder que a metáfora construída pelo humor tem de provocar a destruição, mas ele não destrói por destruir. Ele destrói para evitar a construção de edifícios errados. A coluna está torta, você vai lá, derruba e fala: 'Agora faz direito'. Vai mostrando para a civilização que não é assim, com colunas tortas, que se deve ficar. O riso tem capacidade de instigar a transformação. Se você vai transformar ou não, está na sua mão."
Instigar a transformação, evidenciando práticas ridículas adotadas pela tal da espécie inteligente do Universo com a finalidade de substituí-las por comportamentos que contribuam para a construção de uma sociedade melhor. E aqui eu recorro a mais um trecho da entrevista com Hugo Possolo.
"Instigar a transformação. (...) Essa é a função da arte, que precisa ultrapassar os limites. Mostrar para a sociedade o tempo todo que ela não pode ficar estagnada, que ela sempre se transforma. E que, se tais mudanças não forem bem aproveitadas, muda-se para pior."
Instigar a transformação. Essa é a função da arte. Da arte e de todo indivíduo que já tenha alcançado a compreensão de que transformar em algo melhor o ambiente em que se vive é atribuição de todos os que integrem tal ambiente. E é pensando em tal atribuição que chamo a atenção para os dois seguintes trechos do texto de Rubem Alves.
"Octávio Paz misturava a vocação do palhaço com a vocação do sábio: 'Os verdadeiros sábios não têm outra missão que aquela de nos fazer rir por meio de seus pensamentos e de nos fazer pensar por meio de seus chistes'."
"Leczek Kolakowski, filósofo polonês, escreveu um ensaio com o nome 'O sacerdote e o bufão'. Segundo ele, em toda sociedade há dois tipos de pessoas: os sacerdotes e os bufões. Os sacerdotes são sérios, levam especialmente a sério eles mesmos, suas palavras sempre usam casacas e tudo que é tocado por elas fica sagrado. Os bufões, ao contrário, são destruidores de ídolos e o fazem por meio do riso."
É na proporção entre sacerdotes e bufões que talvez esteja um dos graves problemas desta sociedade. Há sacerdotes demais e bufões de menos. E diante da insuficiência de bufões cabe a cada um de nós agir como um bufão (embora por profissão não se seja um deles), pois se fizermos algum esforço descobriremos que lá no fundo de todos nós existe algum indício de bufonaria aguardando desenvolvimento. E para os que aleguem falta de vocação, cito aqui uma frase dita por Hernanes (um injustiçado jogador da atual seleção brasileira de futebol) em uma entrevista que assisti pouco antes do início desta Copa do Mundo FIFA, e que ele diz ter aprendido com um jogador sul-coreano que conviveu com ele no São Paulo Futebol Clube: "Se você não nasceu sendo, se trabalhar muito você pode se tornar".
E para encerrar esta postagem na qual é estimulada a prática "Ridendo dicere severum" - rindo, dizer as coisas sérias, creio que sejam bastante adequadas as seguintes palavras de Charles Chaplin: "Se tivesse acreditado na minha brincadeira de dizer verdades, teria ouvido verdades que teimo em dizer brincando. Falei muitas vezes como um palhaço, mas jamais duvidei da seriedade da plateia que sorria".

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