quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Avaliações

Avaliações! Eis uma das coisas estupidamente negligenciadas e deturpadas pela dita espécie inteligente do Universo. Foi assim que terminei a postagem anterior; é assim que inicio esta. Eis um tema sobre o qual eu sempre quis escrever, pois, concordo inteiramente com a seguinte afirmação atribuída a Sócrates: "Não vale a pena viver uma vida não examinada.". E em tal afirmação eu entendo que examinada pode ser substituída por avaliada. Não, viver sem avaliar o que se faz é algo que não vale a pena. Afinal, como integrantes da espécie citada no início do parágrafo, uma de nossas principais atribuições é atuar no sentido de melhorar o mundo em que vivemos, e é aqui que entra a imprescindibilidade do ato de avaliar.
Será que é possível melhorar qualquer lugar onde se vive sem corrigir o que contribui exatamente para o contrário: para piorá-lo? Não, isso não é possível. E segundo o método das impossibilidades sucessivas seguem mais duas. Será que é possível corrigir alguma coisa errada sem identificá-la? Não, isso não é possível. Será que é possível identificar erros sem ser um adepto da saudável prática de avaliar tudo o que se faz? Não, isso também não é possível.
Avaliar tudo o que se faz! Eis o ponto de partida de qualquer processo de melhora que se deseje implementar. E se o objetivo é tornar melhor, parece-me óbvio que a função primordial de uma avaliação seja identificar o que esteja errado para posterior correção ou eliminação. Mas, infelizmente, a maioria parece não perceber tal obviedade. E ao não percebê-la, ela (a maioria) deturpa a saudável prática da avaliação. E para aqueles que conseguem alcançar uma posição de chefia a probabilidade de deturpação tende aos 100%. Como um exemplo do que acabo de afirmar, segue algo que vivenciei durante a minha vida profissional.
Na empresa em que atuei durante quase 3,6 décadas, a partir de determinada época (em mais um exemplo de adesão às apregoadas "melhores práticas"), foi criada uma coisa denominada pesquisa de ambiência. Constituída por uma longa série de questões sobre determinados procedimentos usados na empresa, a pesquisa deveria ser respondida "anonimamente" por todos os funcionários.
Na condição de algo em que procedimentos são avaliados pelos funcionários, teoricamente, a principal função de tal pesquisa deveria ser (conforme explicação apresentada no segundo parágrafo acima) identificar coisas que estivessem sendo feitas de modo errado e a partir de tal identificação estabelecer planos de ações capazes de corrigi-las. Teoricamente, pois na prática as coisas não eram bem assim. Em conformidade com esta época em que a maioria é fissurada por fotos, tal pesquisa era vista pelos chefes como uma oportunidade para tentarem ficar bem na foto. E para ficar bem na foto eles são capazes de fazer coisas como a descrita abaixo.
A pesquisa fora conduzida por uma entidade externa e durante uma reunião de apresentação e de discussão de resultados eu ouvi a seguinte pérola. Segundo o condutor de tal reunião, um determinado chefe alegara ter sido prejudicado pelo adiamento da realização da pesquisa. Prevista para o início do segundo trimestre a pesquisa só foi realizada no início do quarto, o que, segundo tal chefe, lhe trouxera consequências funestas, e ele explica. Com a intenção de obter dos funcionários a ele subordinados opiniões lisonjeiras a seu respeito, ele passara o primeiro trimestre tratando-os muito bem. O adiamento da pesquisa levara por água abaixo todo o seu esforço. Manter por três trimestres a farsa por ele encenada no primeiro era algo simplesmente impossível para suas forças.
Em uma época em que a maioria da dita espécie inteligente do Universo pode, com louvor, ser classificada como integrante do MSN (Movimento dos Sem Noção), aquele chefe propiciara um exemplo perfeito de deturpação da finalidade de uma verdadeira avaliação. Em vez de enxergar a pesquisa de ambiência como uma oportunidade de identificar erros visando sua correção, aquele chefe (e a maioria dos demais) via na pesquisa uma ameaça à manutenção de seu cargo de chefia. Sendo assim, em vez da identificação de erros o que ele (e muitos outros) desejava era simplesmente o contrário: era esconder todo e qualquer erro.
Esconder todo e qualquer erro! Eis uma atitude em perfeita sintonia como o lema me engana que eu gosto. E também com a seguinte afirmação de Norman Vincent Peale: "O problema é que a maioria dos homens prefere um elogio que os prejudica a uma crítica que os beneficia.". Preferir o que é prejudicial ao que é benéfico, não só do ponto de vista individual, mas também do coletivo, eis um dos mais sérios problemas da maioria dos homens. Problema que jamais será solucionado enquanto a dita espécie inteligente do Universo não incluir entre as melhores práticas o hábito de avaliar toda e qualquer coisa que faça.
E quando falo em melhores práticas refiro-me não àquelas que são vendidas como sendo o que as melhores empresas estão praticando mundo afora, e sim aquelas que nós só enxergaremos como as melhores a partir do momento em que nos dispusermos a olhar mundo adentro, ou seja, a olhar para dentro de nós mesmos, pois é aí que podem ser encontradas as verdadeiras soluções para os males que impedem que este ambiente em que vivemos mereça ser chamado de civilização.
Que existe quem aprecie avaliações tanto quanto eu creio que seja algo possível; mais do que eu acredito que seja pouco provável. É por entender que avaliar é admitir que fazemos coisas erradas que precisam ser identificadas para possibilitar sua correção ou eliminação que muitas vezes publico postagens dizendo coisas que incomodam pessoas que as lêem. Infelizmente, admitir fazer coisas erradas ainda é algo muito difícil para a maioria.
Há muitos anos, durante a leitura de um livro intitulado Diálogos sobre a vida, de Jiddu Krishnamurti, encontrei uma passagem que me incomodou demais, pois ia de encontro a coisas que eu fazia. O que fiz então? Desisti de continuar lendo o livro e guardei-o. Dei as costas ao livro, mas fiquei com o que lera na cabeça. Como diz uma inesquecível frase de um filme intitulado A Praia, "É fácil dar as costas, mas não é tão fácil esquecer." O tempo passou (não lembro quanto), o incômodo idem, retomei a leitura daquele livro e nunca mais desisti de prosseguir com a leitura de algo apenas pelo fato de ir de encontro a coisas que faço.
Portanto, pedindo-lhes desculpas pela sinceridade, digo-lhes que é isso que desejo que aconteça quando depararem com algo que lhes incomode apenas pelo fato de ir de encontro a coisas que vocês fazem: desejo que não consigam esquecer o que leram e que em algum dia retornem àquela leitura. Não, não estou lhes rogando pragas, e sim desejando que consigam colocar em prática a afirmação atribuída a Sócrates citada no primeiro parágrafo desta postagem: "Não vale a pena viver uma vida não examinada."
Não, não vale a pena viver uma vida que não nos possibilite tornarmo-nos indivíduos cada vez melhores, pois é a partir da melhora de cada uma das partes que se consegue melhorar o todo. "Quando eu consegui consertar o homem, virei a folha e vi que havia consertado o mundo.", é uma frase que aparece no final da bela história apresentada na postagem O homem como centro do universo (21.10.2011). E para tornarmo-nos indivíduos cada vez melhores, há um compromisso do qual jamais deveremos nos abster: dispormo-nos a avaliar tudo o que fazemos, e até o que deixamos de fazer. Avaliar entendendo avaliação segundo o que é dito acima e sem recorrer a qualquer deturpação.

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