segunda-feira, 6 de abril de 2015

Reflexões provocadas por "O jorro do hidronegócio"

Na busca de informações sobre o autor do artigo O jorro do hidronegócio, encontrei (no site http://www.candido.bpp.pr.gov.br) uma entrevista por ele concedida ao Cândido, jornal da Biblioteca Pública do Paraná, onde Sérgio Augusto faz a seguinte revelação.
"Gasto horas percorrendo links atrás de links para conhecer melhor um assunto sobre o qual escreverei (ou tentarei escrever) um artigo para o jornal, em geral para o 'Aliás' do Estadão, que trata de questões mais ligadas à atualidade. Às vezes me meto a tratar de temas com os quais tenho pouca intimidade, justamente para superar essa lacuna. Há pouco gramei, em versão kindle, trezentas páginas de um fascinante estudo sobre o hidronegócio global— The Price of Thirst (O preço da sede) — porque cismei de tocar no problema da falta d’água em São Paulo. Talvez jamais o lesse se não tivesse de escrever sobre a escassez e a comercialização da água no planeta."
Em O jorro do hidronegócio ele diz: "Amparada por quatro bolsas de estudo, Karen Piper (autora do livro citado no artigo), passou uma década viajando e recolhendo dados para seu livro.".
Ou seja, para produzir um artigo com dez parágrafos, Sérgio Augusto "gramou, em versão kindle, trezentas páginas de um livro para o qual Karen Piper passou uma década viajando e recolhendo dados". Sim, produzir algo que preste requer esforço e dedicação, duas coisas, digamos, fora de moda, nestes tempos em que a leitura de qualquer texto que excede dois parágrafos é deixada, não de lado, e sim para trás, sob a alegação de ser longo demais. Feito este desabafo (como diria o meu eterno amigo Demílson), passemos às reflexões prometidas no título. Afinal, quatro parágrafos já foram gastos até aqui, não é mesmo?
Em O jorro do hidronegócio é dito que desde 2012, a companhia responsável pelo abastecimento de água sabia do risco de desabastecimento e que naquela época "limitou-se a alertar investidores da Bolsa de Nova York para a estiagem prevista e seu impacto nas finanças da empresa". Por que ela fez isso? Porque é assim que agem as companhias, conforme explica Zygmunt Bauman em uma passagem de seu livro Globalização: As consequências humanas (publicado pela Jorge Zahar Editor, em 1999) apresentada no parágrafo abaixo.
"A companhia pertence às pessoas que nela investem – não aos seus empregados, fornecedores ou à localidade em que se situa.". Foi assim que Albert J. Dunlap, o célebre "racionalizador" da empresa moderna (um dépeceur – um "açougueiro", um "esquartejador" – na maliciosa, mas precisa definição do sociólogo Denis Duclos, do Centro Nacional de Pesquisas Sociais da França resumiu seu credo no autocongratulante relato de suas atividades que a Times Books publicou para esclarecimento e edificação de todos os que buscam o progresso econômico.
"A companhia pertence às pessoas que nela investem"! Sendo assim, é apenas aos investidores que elas dão satisfações. E em relação aos clientes, como é o comportamento das companhias? De mutável dependência. Como assim? Enquanto dependerem de clientes para crescerem, o comportamento será de consideração por eles, mas assim que atingirem um tamanho que as transformem em corporações, a dependência muda de lado, pois daí em diante são os clientes que passam a depender delas. E então, simultaneamente, ocorre também a mudança no comportamento da companhia em relação aos clientes: termina a consideração e começa o descaso.
Corporações! Eis um dos graves problemas desta insana civilização que cultua o lucro material como valor supremo, pois é em função desse culto que as empresas abrem mão de qualquer escrúpulo em busca de seu aumento de tamanho.
"Hoje comandado por corporações sem a visibilidade da Shell, Exxon, BP, Petrobrás, mas, no seu setor, igualmente poderosas e sedentas de lucro, o hidronegócio sacia a sede de lucro de Suez, Veolia, Thames, American Water, Bechtel e Dow Chemicals (sim, aquela mesma que fabricava bombas de napalm e agente laranja usadas na Guerra do Vietnã). Juntas essas seis empresas controlam mais de 70% da água 'privatizada'. Como as irmãs do petróleo, elas controlam a sua, a minha, a nossa água". Eis mais uma passagem instigante do artigo de Sérgio Augusto. Passagem muito bem complementada pelo trecho apresentado a seguir.
Poderosas e sedentas de lucro! "O New York Times cantou a pedra em 2006. "Sede dá lucro" alardeava o título de uma reportagem ("There's money in thirst"), com informações inéditas sobre o mercado hídrico, que àquela altura já valia centenas de bilhões de dólares. "Mais promissor que a exploração de petróleo", concluía a reportagem."
"Sede dá lucro" alardeava o título de uma reportagem do New York Times. E se dá lucro, obviamente haverá sempre quem se interesse em criá-la. Como fazê-lo? Criando a escassez de água, pois escassez implica em valorização que por sua vez resulta em lucro para quem dispuser do que é escasso, não é mesmo? Escassez causada por alguns fatores, mas dentre os quais destaca-se uma insana exploração do solo, pois "Água é o que não falta", como afirma Sérgio Augusto em mais uma passagem selecionada para esta postagem.
"Água é o que não falta. A Terra ainda dispõe da mesma quantidade de H2O do tempo dos dinossauros; o que mudou foi sua localização, alterada por mudanças climáticas e pela exploração do solo. Faltam sim reservatórios, açudes e aquíferos que não estejam quase exclusivamente a serviço da agricultura ou administrados por corporações internacionais, que se comportam como se explorassem minerais, madeiras e energia solar."
Na condição de jornalista que em geral escreve sobre questões mais ligadas à atualidade, Sérgio Augusto se dispôs a gramar trezentas páginas de um fascinante estudo para escrever um artigo onde esclarece o motivo da escassez da água e adverte sobre males oriundos da comercialização da água no planeta.
Na condição de cineasta que pretende usar a arte para defender sua crença da inaceitabilidade do fato de alguns se acharem donos da água, Shekhar Kapur adverte (em A arte contra a privatização da água no planeta) que ao seguir "a moda de comprar água, apesar de terem acesso à água tratada, as pessoas não percebem que estão colaborando para a privatização da água, para a superexploração de aquíferos. (reservatórios de água subterrâneos) e para a poluição gerada pelas embalagens plásticas.".
Na condição de alguém que acredita que a quantidade de advertências sobre determinada coisa é diretamente proporcional à probabilidade de nelas vermos sentido e consequentemente começarmos a nos movimentar com a finalidade de eliminar a necessidade de continuar repetindo-as, tomar conhecimento das advertências de Sérgio Augusto e de Shekhar Kapur levou-me a querer compartilhar com vocês um antigo artigo onde um conhecido jornalista, também escritor, adverte sobre uma condenável atitude de uma geração de uma determinada classe de um determinado país. Que atitude é essa? A equivocada mania de pretender resolver problemas públicos por meio de soluções (sic) privadas. O país, a classe e a geração, vocês saberão ao lerem o referido artigo na próxima postagem, pois nesta o tamanho que costuma desanimar uma grande quantidade de leitores já foi atingido. Compreendido?

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