sábado, 7 de maio de 2016

Quietude

Esta postagem apresenta parte de um artigo da jornalista Dorrit Harazim publicado em sua coluna semanal no jornal O Globo, na edição de 3 de janeiro de 2016. Os parágrafos suprimidos na transcrição para a postagem focalizam um episódio protagonizado por Chris Christie, governador do estado americano de New Jersey e que, segundo Dorrit, ocorrera alguns domingos atrás, em um quiet car (vagão silencioso) de um trem que partira de Washington para Nova York. A finalidade de tal supressão é – sem prejudicar a ideia que pretendo espalhar - diminuir o tamanho da postagem e, consequentemente, aumentar a probabilidade de sua leitura por uma quantidade maior de pessoas.
Quietude
A ideia por trás dos quiet cars introduzidos em várias linhas férreas americanas é estupenda, por civilizatória, democrática e regeneradora. Não há prioridade para qualquer classe social, raça, religião, nacionalidade, idade, sexo ou outra tribo. Tampouco é possível fazer reserva ou guardar lugar para terceiros. O assento não custa mais caro do que nos demais vagões. Quem consegue lugar num dos 45 assentos de um quiet car (existe apenas um vagão silencioso por trem) costuma defender as normas não escritas de quietude com paixão mais extremada do que as conquistas constitucionais dos Direitos Civis.
As heresias mais graves, ali, são óbvias: falar ao telefone ou deixar o celular tocar. Conversar com amigos ou puxar conversa com quem está sentado ao lado é considerado agressão física (em caso de emergência, seja breve e fale baixinho). Digitar textos com o som do teclado ativado, ouvir música com fones de ouvido audíveis pelo vizinho, folhear jornal estalando as páginas, abrir saquinho de batatas fritas com espocar também não pode. Aliás, nada que emita ruído pode. Ou pelo menos não deve ser tentado.
As heresias mais graves nos 'quiet cars' nos Estados Unidos são óbvias: falar ao telefone ou deixar o celular tocar
O desavisado que entrar por engano num quiet car e não perceber a súbita calmaria em relação ao mundo exterior receberá avisos instantâneos: primeiro, olhares suplicantes e gestos moderados. Num segundo tempo, a frase fatal: "Você está num quiet car". A partir daí, ou o recém-chegado muda de atitude ou o que é para ser um oásis silencioso se transforma numa gritaria igual à do mundo que levou aqueles passageiros até então tão mansos a procurarem refúgio naquele vagão por algumas horas de suas vidas.
Para aproveitar a aparente quietude mundial que cobria o planeta e abrandava até as redes sociais no final de ano no momento do envio antecipado deste texto, houve espaço para listar aqui os nove tipos de silêncio elencados por um americano pouco conhecido, Paul Goodman.
Goodman (1911 – 1972), além de poeta, pensador, crítico social, romancista e psiquiatra cult nascido no Village, era guru de Susan Sontag e adorado pela garotada dos anos 60, que o apelidou de "o homem mais influente de sua geração de quem você nunca ouviu falar". "Nenhuma voz foi tão convincente, genuína e singular em nosso idioma desde D. H. Lawrence", escreveu Sontag no obituário do amigo. "Sua voz era real".
Abaixo, em tradução livre, a transcrição de um parágrafo de seu livro "Speaking and Language: Defence and Poetry" ("A linguagem e o falar: Em defesa da poesia"), em que Goodman lista os silêncios que lhe foram dados a conhecer ao longo da vida:
"Não falar e falar são, ambos, duas maneiras de estar no mundo, e há gradações e formas para cada uma. Há o silêncio apalermado de torpor ou apatia; o silêncio sóbrio acompanhado de uma expressão solene, asinina; o silêncio fértil da consciência, do pastoreio da alma, quando brotam pensamentos novos; o silêncio vivaz da percepção, da prontidão à fala; o silêncio musical que acompanha a atividade absorta; o silêncio que acompanha o ouvir outro falar, pega o desvio e o ajuda a retomar o fio; o ruidoso silêncio do ressentimento e da autorrecriminação, essa linguagem sonora e subvocal; o silêncio do choque; e o silêncio da concordância pacífica com outras pessoas ou em comunhão com o cosmos".
Recomenda-se exercitar alguns desses silêncios em 2016. E tentar eliminar um ou dois.
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"Não falar e falar são, ambos, duas maneiras de estar no mundo, e há gradações e formas para cada uma.", afirma Paul Goodman. Sim, por mais incrível que possa parecer ao imenso contingente de animais falantes que habitam esta dimensão deste planeta, "não falar" é uma de duas maneiras de estar no mundo. Descobrir que "há gradações e formas corretas para cada uma das duas maneiras", eis o que deve ser buscado. Gosto demais da seguinte afirmação atribuída a Confúcio. "Se encontrais uma pessoa a quem vale a pena falar e não lhe falais, perdeis a pessoa; se encontrais uma pessoa a quem não vale a pena falar, e lhe falais, perdeis, isto é, desperdiçais as vossas palavras. Sábio é o que não perde pessoas, nem palavras."
Mas pior do que não falar a quem vale a pena falar; e falar a quem não vale a pena falar, creio que seja sair por aí falando sem ter o que dizer. "Às vezes as pessoas dizem coisas só para encher o silêncio. Ou para chocar e provocar. Ou como exercício. Aeróbica verbal. Musculação loquaz. Há inúmeras razões. Só muito raramente as palavras são usadas estritamente por seus significados denotativos.", eis um parágrafo extraído do livro Tópicos Especiais em Física das Calamidades, de Marisha Pessl.
Quantitativamente tenho uma discordância em relação às afirmações de Marisha Pessl. "Às vezes as pessoas dizem coisas só para encher o silêncio.", afirma ela. Em conformidade com o que vejo no dia-a-dia, troco o "Às vezes" por "Na maioria das vezes". Afinal, como ela mesma afirma na última frase do parágrafo, "raramente as palavras são usadas estritamente por seus significados denotativos.". E ainda chamando atenção para o aspecto quantitativo, destaco aqui a seguinte afirmação de Dorrit Harazim: "existe apenas um vagão silencioso por trem.". Portanto, independentemente de saber quantos vagões compõem cada trem, creio que a existência de apenas um disponível para uso como quiet car já seja informação suficiente para evidenciar a enorme disparidade entre a quantidade de indivíduos conscientes e a de inconscientes nesta insana civilização (sic) na qual sobrevivemos.
Civilizatória, democrática e regeneradora! Eis a opinião de Dorrit Harazim sobre a ideia por trás dos quiet cars. "E nessa ideia de algo ainda não consumado eu incluo coisas como civilização, sociedade, democracia e cidadania.", eis a minha opinião externada duas postagens atrás. Ou seja, até mesmo quando a escolha da postagem a ser publicada é feita com base em uma data comemorativa, e não na anterior, ela tem relação com as imediatamente anteriores. Será que vale a pena teimar em não aceitar que na vida tudo esteja interrelacionado? Será que vale a pena insistir em não querer enxergar a vida usando a visão sistêmica tantas vezes defendida neste blog? Alguma vez vocês já ouviram um antigo ditado segundo o qual "O pior cego é aquele que não quer ver"? Pois é.
Esta postagem é a quarta que publico em alusão ao Dia do Silêncio. Para quem quiser ler as anteriores, seguem os links para fazê-lo. Dia do Silêncio (07.05.2014), Silêncio, por favor (14.05.2015) e Reflexões provocadas por "Silêncio, por favor" (21.05.2015).
Dorrit Harazim termina seu excelente artigo recomendando que em 2016 exercitemos alguns dos nove tipos de silêncio elencados por Paul Goodman; e que tentemos eliminar um ou dois. Eu termino esta postagem reiterando suas recomendações e acrescentando uma. Que a identificação dos silêncios a serem exercitados e dos a serem eliminados seja feita em algum dos raros momentos de quietude que vocês consigam encontrar em meio a essa correria frenética em que vivemos, pois a identificação correta do que fazer com cada tipo de silêncio requer que ela seja feita em silêncio. Compreendido?

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