quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Reflexões provocadas por "A uberização da vida"

"Além de nos disponibilizar serviços no esquema 24/7 (24 horas por dia, sete dias da semana), a internet começa, agora, a preencher nichos de tempo livre com trabalho. Chamo a esse fenômeno de uberização. (...) Todo mundo está disposto a fazer 'bicos', e todo mundo, também, fica feliz quando pode pagar menos por um serviço. (...) É possível que, em pouco tempo, o trabalho qualificado se torne parte do precariado. (...) A uberização é o trabalho em migalhas. (...) O homem contemporâneo ainda associa trabalho com dignidade, embora, paradoxalmente, esteja aceitando trabalhos cada vez mais indignos para sobreviver."
O parágrafo acima é uma compilação de trechos do excelente texto do filósofo João de Fernandes Teixeira espalhado pela postagem anterior. E ao dizer que "o homem esteja aceitando trabalhos cada vez mais indignos para sobreviver.", João Teixeira me faz lembrar uma afirmação feita pelo extraordinário Sebastião Salgado em uma entrevista concedida a Roberto D’Ávila, há muitos anos, que é mais ou menos assim: a louvada capacidade de o ser humano adaptar-se a tudo é, na verdade, um malefício, pois leva-o a adaptar-se a coisas contra as quais deveria indignar-se.
E nestes tempos em que todos dão respostas sem jamais se fazerem perguntas, durante um encontro familiar em que o assunto Uber veio à baila, ao dizer que o objetivo do referido aplicativo é a aplicação de veículos sem motorista, ouvi uma sobrinha responder (enquanto interagia com seu smartphone) algo mais ou menos assim: "Agora é assim mesmo, as máquinas é que farão tudo.". Para mim, foi triste constatar que algo que deveria dar o que pensar seja tão natural para uma jovem. Uma jovem que, imediatamente, me fez lembrar algo dito por um antigo ganhador de Prêmio Nobel.
Cirurgião, fisiologista, biólogo e sociólogo que, em 1912, recebeu o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia, autor de um livro publicado em 1935, com o título O Homem, Esse Desconhecido, traduzido, reeditado e transformado num grande êxito mundial até a década de 1950, Alexis Carrel (1873 - 1944) é autor da seguinte afirmação? "A civilização não tem como finalidade o progresso das máquinas; mas, sim o do homem".
O Homem, Esse Desconhecido, eis o título de um livro escrito por alguém para quem a finalidade da civilização é o progresso do homem, não o das máquinas. Vocês imaginam qual deveria ser o título de um livro que fosse escrito por alguém que enxergue como algo natural a entrega do destino do homem nas "mãos" de máquinas? Será que O Homem, Esse Resignado seria um título adequado?
E de lembrança em lembrança, ao ver a aceitação como natural de algo que deveria indignar-nos, o método das recordações sucessivas me faz lembrar a seguinte afirmação de Bertolt Brecht (1898 – 1956): "Nada deve parecer natural; nada deve parecer impossível de mudar." Afirmação extraída do seguinte texto:
Nada É Impossível De Mudar
Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.
Pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar". Vocês percebem nas características do tempo a que se refere Bertolt Brecht alguma semelhança com o tempo em que sobrevivemos? Sinistro, não? O que aconteceu entre aquele tempo e este? No aspecto tecnológico, uma estupenda evolução; no aspecto comportamental, uma estúpida estagnação.
Por considerá-lo em conformidade com o que é dito em "A uberização da vida", incluo nesta postagem mais um texto de Bertolt Brecht.
"Primeiro levaram os negros, mas não me importei com isso. Eu não sou negro.
Em seguida levaram alguns operários, mas não me importei com isso. Eu também não sou operário.
Depois prenderam os miseráveis, mas não me importei com isso. Porque eu não sou miserável.
Depois agarraram uns desempregados, mas como tenho meu emprego, também não me importei.
Agora estão me levando, mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo."
Primeiro "uberizaram" os desempregados, mas não me importei com isso. Eu não sou desempregado. Em seguida "uberizaram" alguns trabalhadores pouco qualificados, mas não me importei com isso. Eu também não sou trabalhador pouco qualificado. Agora estão me "uberizando", mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo. Segundo o filósofo João de Fernandes Teixeira, "uberização" é o trabalho em migalhas. É à luz dessa definição que deve ser interpretado este parágrafo, OK?
Sobre o assunto Uber já foram publicadas, no blog Lendo e opinando, as seguintes postagens: Preço baixo da Uber vai acabar, diz especialista (29.02.2016) / Compartilhando asneiras (12.03.2016) / Após táxis, Uber agora enfrenta seus motoristas (11.04.2016). Considerando que o assunto é deveras instigante, creio que outras postagens ainda ocorrerão.

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