sábado, 23 de setembro de 2017

Reflexões provocadas por "Pela janela do Opala da minha mãe"

Encerrando o cumprimento da promessa feita no antepenúltimo parágrafo da postagem Super-heróis contra o cinismo, segue o segundo texto que considero capaz de ajudá-los a pensar sobre a existência de uma idade até a qual uma criança ainda não aprendeu a ser cínica.
"Eu devia ter uns 7 anos quando enxerguei pela primeira vez uma criança de rua.", diz Milly Lacombe em um maravilhoso texto publicado na revista Trip uns 43 anos depois (Milly tem hoje 50 anos) e espalhado pela postagem anterior deste blog. Texto onde ela cita uma cena que tanto a marcou, conforme se pode deduzir a partir do que ela diz algumas frases depois.
"Ainda posso ver seu rosto, a expressão de seus olhos pelo vidro do Opala. Sei exatamente em que esquina estávamos – e até por isso a memória daquele dia volta sempre que passo por lá. ", diz Milly fazendo-me lembrar uma frase que ouvi há 17 anos no filme A Praia: "É fácil dar as costas, mas não é tão fácil esquecer." Uma frase que, no meu entender, dá o que pensar a quem ainda demonstre alguma sensibilidade ao ler os dois próximos parágrafos, extraídos do maravilhoso texto de Milly Lacombe.
"(...) É o que fazemos nessa viagem maluca pela Terra: passamos o bastão; colaboramos com os que estão aqui agora, aceitamos a colaboração dos que vieram antes, deixamos alguma algum conhecimento de herança para os que nos substituirão e, especialmente, aprendemos que as mais individuais de nossas conquistas nunca são mérito de nossos esforços e talentos, mas resultado da colaboração de uma comunidade inteira."
"Dominamos completamente o planeta não porque somos mais espertos e ágeis do que um chipanzé e sim porque somos a única espécie capaz de uma cooperação flexível e em grande escala", escreve o historiador israelense Yuval Noah Harari em seu Homo Deus. O que nos distingue das demais espécies é, portanto, a capacidade de cooperar, de nos ajudar, de nos organizar, de viver em comunidades.
Diante do que é dito nos dois parágrafos anteriores, será que faz algum sentido dar as costas àqueles com quem devemos cooperar? Será que o próprio fato de esquecer não ser tão fácil quanto dar as costas ajuda a responder a questão anterior? O que vocês acham?
"Aos olhos de uma criança as injustiças do mundo provocam as únicas reações possíveis: choque e vontade de mudar as coisas. Aos olhos de um adulto, já completamente inserido nesse mundo maluco e cruel em que vivemos, o efeito já não é o mesmo: 'É assim que as coisas são', dizemos a nós mesmos. Mas as coisas não deveriam ser assim, as coisas não poderiam ser assim, e nós não deveríamos nos acostumar que as coisas fossem assim. Essa sociedade adoentada em que vivemos não foi imposta por ordem divina, ela foi criada por cada um de nós, e todas as coisas que homens e mulheres criaram podem ser destruídas, reformadas, renovadas.", diz Milly Lacombe.
Sim, "Aos olhos de uma criança as injustiças do mundo provocam reações" como a descrita em uma notícia publicada na edição de 23 de setembro de 2016 do jornal Folha de S.Paulo sob o título Em carta, menino pede que Obama busque criança síria. Notícia que é reproduzida a seguir.
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Em carta, menino pede que Obama busque criança síria
O menino norte-americano Alex, de seis anos, ficou consternado com o que aconteceu ao pequeno Omran Daqneesh, 5, filmado dentro de uma ambulância com o rosto coberto de poeira e sangue após uma ataque aéreo na cidade de Aleppo, na Síria. O irmão mais velho de Omran, Ali, morreu. Alez, que mora perto de Nova York, escreveu uma carta ao presidente americano Barack Obama sobre o caso.
"Você pode por favor ir buscá-lo e trazê-lo [para minha casa]? Nós estaremos esperando com bandeiras, flores e balões. Nós lhe daremos uma família e ele será nosso irmão", escreveu a criança.
Em cúpula de líderes sobre a situação dos refugiados na Organização das Nações Unidas, na terça (20), Obama citou a carta do menino.
"A humanidade que uma criança pode mostrar, uma criança que ainda não aprendeu a ser cínica [...] e que entende a noção de tratar alguém que é como ele com compaixão e bondade – todos podemos aprender com Alex", disse o presidente.
Casa Branca fez um vídeo em que Alex lê a carta, que repercutiu em redes sociais nesta quinta (22). A foto alusiva ao vídeo apresentada na notícia é mostrada no final da postagem.
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"Nós lhe daremos uma família e ele será nosso irmão", escreveu a criança. (...) "A humanidade que uma criança pode mostrar, uma criança que ainda não aprendeu a ser cínica [...] e que entende a noção de tratar alguém que é como ele com compaixão e bondade – todos podemos aprender com Alex", disse o presidente.
"Aprender com uma criança que ainda tenha humanidade a mostrar, com uma criança que ainda não aprendeu a ser cínica.", eis o que enxergo como ponto de partida para solucionarmos os problemas do mundo, pois, como diz a postagem publicada neste blog em 28 de agosto de 2015, Se o mundo tem solução, é através da criança.
"Aos olhos de uma criança as injustiças do mundo provocam as únicas reações possíveis: choque e vontade de mudar as coisas. Aos olhos de um adulto, já completamente inserido nesse mundo maluco e cruel em que vivemos, o efeito já não é o mesmo: 'É assim que as coisas são', dizemos a nós mesmos.", diz Milly Lacombe fazendo-me lembrar uma frase de Antoine de Saint-Exupéry, o autor de O Pequeno Príncipe. "Todas as pessoas grandes foram um dia crianças. Pena que sejam poucas as que se lembram disso."
Não se lembrar de ter sido criança é realmente uma pena, pois significa não lembrar também de que até certa idade não se era cínico. Seis anos tinha o menino americano que protagoniza a notícia citada nesta postagem. Uns sete anos (segundo a própria) tinha Milly Lacombe na época em que ocorreu a cena por ela narrada em seu maravilhoso texto reproduzido na postagem anterior. Será que as duas postagens com as quais pretendo ajudá-los a pensar sobre a existência de uma idade até a qual uma criança ainda não aprendeu a ser cínica atingiram seu intento?

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